Paçoca

Outros nomes: paçoca de pilão, paçoca de carne-seca, paçoca de carne-de-sol

A paçoca de carne é um alimento feito à base de carne-seca ou carne-de-sol assadas ou fritas, desmanchadas no pilão de madeira com farinha de mandioca, posteriormente levada ao tacho para secar. Feita dessa forma, pode durar vários dias, fornecendo energia para caminhadas, expedições, travessias e jornadas de trabalho de povos indígenas, tropeiros e comunidades rurais do Sertão e do Cerrado brasileiro. Um preparo de tradição ancestral, que deu origem a variações bastante típicas em algumas regiões do Norte ao Sul do Brasil.

O termo “paçoca” deriva do termo tupi pa’soka que, de acordo com alguns dicionários, é formado pela junção de paba, terminar, com soka, socar. No livro “História da Alimentação no Brasil”, Luís da Câmara Cascudo explica que a paçoca, do tupi paçoc, significa esmigalhar, desfiar, esfarinhar.

A versão indígena da paçoca é feita com carne de caça ou peixes, secas e torradas no moquém, em seguida batidas no pilão com a farinha de mandioca. Dificilmente os antepassados indígenas teriam adicionado sal ou algum aroma, a não ser talvez pimentas. Era comum também secarem o animal inteiro nas traves do moquém, sem retirar os órgãos e vísceras, sobretudo os peixes, o que colabora com um sabor intenso e sápido, além de boa dose de gordura. O motivo para levar ao tacho novamente a mistura, depois de socada no pilão, é desidratar ainda mais a paçoca, além de “apurar o sabor”. Dessa forma, garante-se maior durabilidade. Bem torrada, uma paçoca pode durar até um mês, ou mais. Esse alimento era o combustível para as viagens pela mata, as campanhas de guerra e expedições e, provavelmente, também parte do consumo habitual nas casas e nas aldeias. É fácil imaginar outras “misturas” de paçoca se alternando e convivendo com a paçoca de carne, com o uso da farinha de milho, castanhas, pinhões e amendoins.

Os primeiros colonizadores europeus certamente se alimentaram com paçocas e farinhas indígenas em suas estadias e exploração do território, suas viagens de retorno e durante a formação de seus primeiros assentamentos. Mas, em relativo pouco tempo, dois novos elementos passariam a fazer parte habitual desse preparo: o sal, que oferecia a vantagem óbvia da maior conservação (além de intensificar o sabor e aguçar o paladar) e a carne bovina, de animais que passaram a ser criados nos campos próximos aos arraiais. Após o abate, as peças eram salgadas e expostas ao sol ou local ventilado e seco para desidratar, dessa forma, podiam ser conservadas por mais tempo e comercializadas para outras regiões.

Como a intenção original deste preparo era que fosse um alimento pouco perecível, feito para durar, a paçoca não levava ervas ou temperos que pudessem comprometer a sua conservação. Dessa forma, ingredientes como a salsinha e a cebola (que chegaram com os colonizadores), além de pimentas frescas seriam, eventualmente, acrescentados no prato ou na panela, na hora de comer ou “requentar” a mistura. A mudança das carnes mais secas para a carne-de-sol também é o reflexo da menor necessidade de conservar por longo tempo esse alimento, mantendo o consumo local e mais circunscrito. Todavia, as paçocas feitas com carne-de-sol (menos seca e menos salgada) podem ser torradas no tacho para secarem, após piladas e, assim, aumentarem sua durabilidade.

Durante os séculos XVIII e XIX, a paçoca foi muito usada como alimento por tropeiros e viajantes, que difundiram o hábito da preparação e do consumo nas regiões por onde passavam e pousavam as comitivas. Alguns destes locais se especializaram em receber e abastecer as tropas (oferecendo pouso e comida, além de tratar dos animais), permitindo que os viajantes partissem com a “matula” cheia pelas estradas nas montanhas. Um pouco mais tarde, essa tradição foi difundida também pelos romeiros e peregrinos que percorriam longas estradas em direção aos locais de veneração, levando consigo alimentos secos, resistentes e nutritivos.

A paçoca era consumida de várias formas: como um “aperitivo” ou merenda fácil durante o trajeto (recolhida com a mão aos punhados e lançadas à boca em “capitão”), como um primeiro desjejum, acompanhando o café; como prato ou acompanhamento amolecido com água quente, caldo de feijão ou arroz quente cozido. 

Em alguns territórios, a paçoca se afirmou como um alimento tradicional, mesmo tendo sofrido algumas transformações, mantendo, até hoje, a sua forte ligação com a cultura local por diversas gerações.   

Paçoca e farofa

Em parte, algumas das mudanças que diferenciam o preparo indígena, o preparo dos tropeiros e o preparo feito hoje em dia da paçoca dizem respeito à conservação. Provavelmente, também ao gosto e ao paladar. Seja pela menor necessidade de conservar a paçoca pronta quanto pela maior facilidade de conseguir carnes “frescas” ou carnes menos secas e menos salgadas, conservadas na geladeira, a paçoca hoje pode ser um produto menos desidratado do que a sua versão original. Deixou aos poucos de ser comida de viajantes para se tornar comida “de casa”, habitual, e ganhou temperos da horta, como o alho, o colorau, ervas e pimentas frescas. Da mesma forma, em algumas regiões, a carne-seca perdeu um pouco do seu espaço para a carne-de-sol, técnica que se difunde a partir da maior disponibilidade da carne fresca, que mantém a suculência e modifica menos o sabor dos cortes utilizados. Ambas versões coexistem nas variações regionais de paçocas. Perderam espaço também as carnes de caça, de animais selvagens como veados campeiros, porcos do mato, tatus, que foram bastante consumidos até a poucas gerações, além de cabras, bodes e carneiros (não só perderam espaço, como desapareceram, com a exploração intensiva e profunda modificação dos seus habitats).  

Mudanças importantes dizem respeito também às gorduras utilizadas. Enquanto o indigena assava as carnes e usava provavelmente somente a gordura do próprio animal (ou do coco ou da castanha), os preparos que se sucederam incluíram a fritura dos pedaços de carne na banha de porco ou na manteiga de garrafa. Atualmente, os óleos vegetais industriais substituíram, em alguns locais, o uso dessas gorduras, colaborando para descaracterizar esse preparo, feito antes exclusivamente com ingredientes domésticos, regionais e naturais.    

E, finalmente, o uso do pilão, que representa o elo de ligação mais forte com a origem desse alimento, seu nome, sua textura e seu sabor. O pilão desfia, desmancha a fibra da carne enquanto mistura a gordura com a farinha. A carne se transforma em fiapos (daí o uso de carnes com fibras longas, fornecendo um resultado especial) e a farinha adquire consistência crocante e engordurada. O resultado obtido em trituradores, liquidificadores ou outras máquinas é diferente, no visual, na textura e no sabor. 

Mais molhada, temperada com cebola, acompanhada de “cheiro verde” e sem passar pelo pilão, a paçoca se transforma em uma “farofa”. Deixa de ser um “produto” (armazenado, transportado, comercializado) e passa a ser uma receita (um preparo, com suas variações, para consumo doméstico e imediato). 

Se a carne (de boi) não parece correr riscos de desaparecer no Brasil (enquanto deveria, ao contrário, ter o seu consumo drasticamente diminuído), a farinha consumida já é, em parte industrializada, salvo nas regiões que mantém fortes suas tradições e o hábito de produzir e consumir excelentes farinhas de mandioca. Já a gordura, foi amplamente substituída por óleos vegetais industriais, na maioria das casas brasileiras.

Defender a paçoca, em sua versão tradicional, significa dar luz a estes ingredientes tão importantes para a cultura alimentar de uma grande parte da população, na tentativa de valorizá-los, sobretudo nas regiões onde eles estão se perdendo. Valorizar o uso de um utensílio rústico como o pilão, mais do que uma forma de anacronismo ou de saudosismo, representa a defesa de um tempo e de um ritmo do fazer, que conecta esse alimento a um processo mais artesanal, mais essencial; é o reconhecimento do esforço e a valorização do seu preparo, o entendimento e a experiência do sabor, da textura, das características e das diferenças únicas, resultados do seu modo de fazer. Nas palavras de Câmara Cascudo: “a paçoca exige o pilão sob pena de não ser paçoca”.

Modo de fazer e características regionais


De acordo com Vicentina Bispo, de Januária (MG), a paçoca era comida de quem trabalhava na roça: 


…no aboio do gado, sem caminhão, levavam o gado de uma fazenda para outra, a distância era longa, levavam um ajudante que seguia na frente e fazia as comidas. No meio dessas comidas, existia a paçoca de carne-de-sol, que era a comida mais rápida, ela já vinha pronta, eles já faziam com antecedência, e forte, porque as fibras da carne juntamente com a farinha enchem a pança rápido e matam a fome rápido dos tropeiros.

Existem também outras paçocas, explica Tina, “a paçoca doce, que é com amendoim ou com castanha de pequi, castanha de caju, essas adicionadas de rapadura e a farinha”:

…mas o tradicional é fazer ela assada na brasa, amassada na mão de pilão com a farinha e depois passada na gordura para ela pegar o sabor da gordura com o alho bem torradinho junto. Esse é o tradicional. Ou então fritar ela bem na gordura e depois adicionar a farinha e deixar a farinha torrar e você leva no pilão. Tem um sabor diferente. E só pega esse sabor diferente depois que você bate ela no pilão. Fica muito saborosa.

Maria Jesus da Costa é uma reconhecida produtora de paçoca de Turmalina, região do Vale do Jequitinhonha (MG). Seu produto viaja por diversos estados para matar a saudade de moradores emigrados e outros apreciadores da iguaria. Os visitantes “trazem a carne e pagam a fazeção”. Maria gosta de lavar “bem lavadinha” a carne, que depois de picada é colocada para escorrer: “não gasta carne de primeira para fazer paçoca”. Ela coloca a carne na panela com pouca gordura, e só quando está macia ela passa para uma segunda panela com bastante gordura quente para fritar. Quando a carne esfria, vai para o pilão com alho picado, uma pitada de urucum (colorau), torresmo e a farinha, até desfiar e atingir a consistência desejada. 


Vovó Elenita, em seu canal virtual na internet, compartilha suas memórias e sabedoria, e explica:

Agora não tem mais carne-seca, é só carne-de-sol. Porque naquele tempo tinha muita carne seca, era bem seca, porque não tinha geladeira e a gente tinha que aproveitar a carne. Você comia carne fresca só quando matava o gado, depois era só seca, porque tinha que salgar, secar, para poder guardar.

Elenita frita a carne na banha de porco, que ela mesmo tira do toucinho. Gosta de sabores intensos, por isso usa farinha de puba: “pouca gente conhece (…) é da região Norte, fica uma delícia”. Ela lembra um detalhe importante, “se for usar cebola, tem que ser bem tostadinha, senão ela azeda”, mas o melhor é não usar muito tempero, “inventar coisa demais”. Vovó Elenita, porém, abriu mão do pilão. De acordo com ela, a sua receita é de “paçoca de pilão feito no liquidificador”.

Em Tocantins, a paçoca se tornou um alimento bem tradicional. Antigamente era merenda popular para as crianças nas escolas e presença certa na matula de todo trabalhador da roça: “o sertanejo sempre soube que uma pequena porção de paçoca e um copo de água garantem um dia inteiro de trabalho”, compartilha Letícia Massula. Ela conta também que o pilão era um dos utensílios mais comuns nas casas de fazenda e de roça: “eu adorava chegar na fazenda e fazer paçoca com a criançada, de carne ou de coquinho macaúba catado no pasto, que a gente pilava com rapadura e farinha de puba”.

Letícia sugere deixar as pontas mais secas da carne-de-sol para fazer a paçoca (a parte do meio, mais suculenta, vai para a brasa ou para a chapa). Porém confessa: “se minha avó estivesse viva estaria me olhando com desaprovação”. Olhariam com desaprovação também outras produtoras tradicionais, que garantem que o processador elétrico “acaba com a fibra da carne”. Uma outra paçoca, essa passada no triturador. Uma espécie de farofa batida. 

Na feira de Palmas, ainda no Tocantins, a paçoca de carne é um dos alimentos mais procurados pelos visitantes, que formam filas na frente de algumas barracas. É possível encontrar paçocas de farinha “branca” do Sul do país, paçoca de farinha puba e tradicional, nas versões com ou sem pimenta. Na barraca de Delson Martins, conhecido como “o Rei da Paçoca”, kilos e kilos de paçoca são produzidos e comercializados em cada dia de feira. Engenhosos, estes produtores adaptaram uma espécie de pilão mecânico, que facilita o trabalho, sem abrir mão do contato da madeira e do ritmo e efeito da mão do pilão.  

No Piauí, a cidade de Campo Maior é famosa por produzir uma carne-de-sol considerada de excelente qualidade. Onde tem carne-de-sol, costuma ter paçoca, e a produção desse alimento ainda é tradicional na região.

Em Boa Vista, capital de Roraima, a paçoca é um alimento bastante conhecido e procurado, e muitos produtores investiram nesse preparo em média e larga escala. Várias fábricas foram criadas, obtendo, algumas, delas a certificação dos órgãos sanitários federais, o que permite o envio do produto para qualquer parte do país. É comum consumir a paçoca refogada com cebola e temperos, ou acompanhada de banana e café (como acontece também em grande parte do Nordeste). Mas essa produção em escala só foi possível com o uso bastante difundido de trituradores elétricos (que permitem processar grande quantidade de produto, em alguns casos, até 1 tonelada por dia), além do uso difuso do óleo vegetal industrial. 

A cidade de Pilar do Sul, em São Paulo, registrou a paçoca de carne de tradição tropeira como patrimônio cultural imaterial da cidade, o que fez mais ou menos também a cidade de Arraias, no Tocantins.

Quando a paçoca é feita com carne-seca ou charque, é preciso deixar as carnes de molho na véspera, para que amoleçam e percam parte do sal. Antes de fritar, as peças escorridas devem ser cortadas no sentido da fibra, para mantê-las intactas, na forma de cubos ou tirinhas. 

As carnes devem fritar de preferência em banha de porco, manteiga de garrafa ou gordura de coco, até dourarem e secarem bem. Para acrescentar cebolas, é melhor dourá-las primeiro nessa mesma gordura, antes de levá-las para o pilão. 

A carne é, então, pilada com a farinha e, eventualmente, alho e colorau. Depois de bem pilada, a mistura volta para a panela (possivelmente no mesmo fundo da gordura utilizada para fritar a carne) para apurar e secar.

Depois de fria, pode ser armazenadas em potes e latas e conservadas por um período de até um mês, ou mais, dependendo dos ingredientes utilizados e a umidade final da paçoca.

Usos gastronômicos: 

A paçoca é um alimento pronto, que pode ser consumido puro, acompanhado de arroz, feijão verde, pirão de leite ou de queijo, ou com a clássica combinação com banana, além de refogada ou aquecida com cebolas, pimentas de cheiro e ervas frescas aromáticas.

Texto e pesquisa: Marcelo de Podestá

Referências:

DA ORIGEM ao prato: Paçoca de Pilão de Maria Jesus da Costa, Turmalina – MG. Fartura Brasil, 26/09/2020. Disponível em: <https://youtu.be/EskLHyk2BOo>. [Acesso em 11/11/2021] 

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1986. p. 1 244.

HISTÓRIA da Carne de Sol. Site Tábua de Carne (online). Disponível em: <https://tabuadecarne.com.br/historia-da-carne>. [Acesso em 11/11/2021]

MASSULA, Letícia. Carne de sol e paçoca de carne com buriti. Cozinha da Matilde (online), 07/10/2015. Disponível em: <http://www.cozinhadamatilde.com.br/carne-de-sol-e-pacoca-de-carne-com-buriti/>. [Acesso em 11/11/2021]

NAVARRO, E. A. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. 3ª edição. São Paulo. Global. 2005. 463 p.

RECEITA de paçoca de carne-seca. Revista Globo Rural. Por Sebastião Nascimento. 04 DEZ 2013. Disponível em: <https://revistagloborural.globo.com/vida-na-fazenda/receitas/noticia/2013/12/receita-de-pacoca-de-carne-seca.html>. [Acesso em 11/11/2021] 

PAÇOCA de carne é muito apreciada no Piauí. 02/07/2013. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/2666560/>.  [Acesso em 11/11/2021] 

PAÇOCA de de pilão feita no liquidificador. Vovó Elenita, 01/07/2019. Disponível em: <https://youtu.be/G2izytQUcw4>. [Acesso em 11/11/2021] 

‘PELAS Cozinhas de Minas’: aprenda a fazer paçoca de carne de sol. Belo Horizonte: MG-1, 22/08/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/pelas-cozinhas-de-minas/noticia/2018/08/22/pelas-cozinhas-de-minas-aprenda-a-fazer-pacoca-de-carne-de-sol.ghtml>. [Acesso em 11/11/2021] 

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